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” Viajar numa peregrinação traz consigo a sublimação de nossas fronteiras imaginárias. Ao iniciarmos o caminho, é a fé no diferente, no destino e no mundo que nos move. Na fé sem fronteiras, o homem transcende sua própria existência”.

Não posso dizer que minha motivação a fazer o caminho de Santiago de Compostela tenha sido genuinamente a fé católica como a maioria das pessoas a vêem. Mas a fé no diferente, nas diferentes formas de manifestação da mente e da própria natureza sempre me fascinaram. Por isso fiz tantos retiros e viagens sozinha.

A ideia da peregrinação me seduzia mais pelo retiro em si do que pelo sacrifício ou algo que eu fosse encontrar que já não estivesse comigo a todo momento. O contato com a natureza, o entendimento do corpo, a superação do próprios limites físicos e mentais, o silêncio, o questionamento sobre o que de fato necessitamos para viver eram os atrativos para mim neste desafio.

Com férias longas já agendadas na Europa, vi na rota a Santiago uma opção segura para fazer minha primeira peregrinação – e sozinha.

A peregrinação a Santiago de Compostela, no Noroeste da Espanha (Coruña), é uma das mais conhecidas no mundo e oferece diferentes possibilidades para quem deseja caminhar. Isso porque tem 03 rotas principais, todas já equipadas com albergues, hoteis, restaurantes e outras infraestruturas em cada cidade que se pare para pernoitar. Barraca, só para quem fizer questão! O peregrino passa também por diferentes igrejas e capelas católicas, uma vez que o caminho teoricamente reproduz os passos de São Francisco de Assis e de outros tantos peregrinos que buscavam ao longo dos séculos seguir as trilhas de Santiago, ou Tiago, o apóstolo peregrino. Acredita-se que o apóstolo tenha passado pela península ibérica logo após o episódio de Pentecostes e retornado a Judéia onde foi martirizado. Segundo a lenda, seu corpo foi sepultado em Compostela.

A Rota do Norte é a mais difícil de todas, pois ainda preserva áreas de grandes desafios em uma natureza mais primitiva. A Rota Francesa é a mais conhecida e praticada. Tem pouco mais de 800km desde os Pirineus, na fronteira com a França e leva em torno de 30 dias para ser concluída. Muita gente escolhe desta rota um trecho menor, partindo do meio ou menos para Santiago.

A Rota Portuguesa é a mais curta e foi a mais conveniente para mim uma vez que já estaria em Lisboa. Partindo do Porto, tem 230km. Mas a melhor opção é partir de Vilarinho, 30 km ao norte do Porto, de onde a saída a pé é mais segura. Sim, acostume-se com a ideia: As saídas e chegadas nas cidades são sempre pelas auto-estradas, o que aliás é muito chato e perigoso. Por isso já deixo aqui a primeira dica: fique bastante atento sempre ao andar pelos acostamentos e outras vias asfaltadas, o que constitui a maior parte desta rota portuguesa.

O único ônibus diário que sai para Vilarinho parte da estação de ônibus na rua Fonseca Cardoso, próximo a estação Trindade de metro, e não precisa comprar antecipado, pode pagar direto ao motorista (8,00 euros). Mas sugiro ir antes a esta (micro) estação para confirmar o horário. Quando estive lá era as 14hs, mas isso pode mudar.

Em São Paulo, na Associação de Confrades e Amigos do Caminho de Santiago de Compostela, peguei minha credencial e muitas dicas sobre o caminho, o que levar, como se comportar, prevenções, emergências e etc. Lá eles também oferem palestras e caminhadas mais curtas preparatórias para quem quer ir a Santiago. No fim do post estão as minhas dicas precisosas, que colhi lá, em outros sites, com amigos e com a própria prática.

Segundo as estatísticas, o melhor mês para a caminhada é em junho, onde teoricamente é mais seco e ainda não tão quente quanto o alto verão. Mas preparem-se!!! A Galícia é famosa pelo umidade absurda e pelo mal tempo. Reza a lenda que chovem 330 dias no anos! O norte de Portugal também não fica tão melhor. Cheguei ao Porto numa sexta-feira com o tempo muito fechado, frio e chuvoso (em pleno verão!!) e por isso me atrasei 02 dias na entrada da rota. De qualquer forma foi bom, porque a cidade do Porto merece mesmo uns 03 dias para ser vista! (Jajá vem um post TOP sobre ela) ;-) Durante a rota, peguei umas chuvas espaçadas, mas todos os dias!

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TUI

TUI

FRONTEIRA

FRONTEIRA

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Se você calcular andar 10 dias, pode fazer 20km por dia e encontrar sempre as cidades maiores para pernoitar. Eu fazia cada trecho em média em 04 horas. Mas conheci um casal de brasileiros que estavam mais relax e chegaram a demorar 10hs no mesmo trecho.

Nesta época do ano não encontrei muitas pessoas pelo caminho. (Não sei se era por causa da Copa ou se é sempre assim). Durante o fim de semana esta frequência aumentava um pouco, pois os portugueses e espanhóis fazem trechinhos do caminho como lazer no fim de semana. Por isso, parte do caminho passei sozinha.

Surpreendentemente, encontrei os hostels cheios, ou seja, estes são os pontos de encontro oficiais dos peregrinos, uma vez que ao longo do dia vimos pouca gente. Quanto ao hostel, vi que são arrumadinho e tudo, têm infraestrutura para os peregrinos como camas e chuveiros e alguns deles nem cobram pela hospedagem ou cobram 5/10 euros. Mas amiguinhos, vou confessar. Chegou na hora H, eu quis ficar no hotel.

Caminhei com o sleepbed, conforme orientação recebida, pois ele é necessário para deitar sobre a cama do hostel. Me planejei para os hostels (albergues), fui com o peso e tudo, mas chegando lá, tão cansada que estava, achei um luxo necessário a privacidade do banheiro e um sono restaurativo sem os 50 coleguinhas de quarto roncando! Para quem achar o hotel um luxo necessário (emboras os únicos hoteis das minúsculas cidades sejam instalações super simples tipo ½ estrela), se prepare para 30/40 euros por noite. Isso é bem caro considerando a média dos hotéis em Porto e Santiago (as cidades maiores) e a infra que oferecem.

Bom, depois deste episódio hostel/hotel, confirmei que minhas habilidades para passar “perrengue” são mesmo limitadas.

Quanto aos “perrengues” mais tradicionais até que foram numa boa. A mochila, que deve ter no máximo 10% do seu peso, tinha 6,5kg e depois de 30 minutos de caminhada já pesava uma tonelada. Constatei que a mochila que peguei emprestada da minha amiga não era anatômica para o meu corpo embora tivesse as cintas lombar e peitoral. Isso dificultou um pouco, mas fiquei feliz de não ter comprado uma (elas costumam ser bem caras), uma vez que não sabia se gostaria de caminhar e se precisaria de novo um dia.

A panturrilha (famosa batata da perna) voltou para São Paulo 1cm maior. Doía tanto no final dos primeiros dias que achei que ia se desfazer! Depois se acostumou, mas ainda doía! Hehe…

Arredores de Porriño, peregrinos brasileiros

Arredores de Porriño, peregrinos brasileiros

PONTE VEDRA

PONTE VEDRA

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Ao final de cada dia eu me alongava por uns 30 minutos e com certeza isso ajudou a restaurar o corpo. Assim que chegava a cidade bebia mais de um litro d’água para regenerar os tendões. Fui orientada a beber muita água pelo caminho por este mesmo motivo, e não me acanhar se tivesse que fazer xixi no mato. Mas aí entra a parte mais sinistra da história: não havia mato!

Sim, isso mesmo!!!! Fui esperando um contato surpeendente com a natureza e adivinhem? Mal estive na natureza. Se dos 200km de rota, 50km forem de natureza será muito. A rota postuguesa de Santiago segue essencialmente por caminhos paralelos a auto-pista. Há pouco tempo atrás seguia pela própria estrada, mas com o número elevado de atropelamentos o percurso foi desviado um pouco para dentro, e segue nesses bairros marginais em quase todo o percurso. Portanto, enquanto você não encontra um café aberto, vai ter que segurar o xixi ou se agachar no meio da rua correndo o risco de ser atropelada ou ter o bumbum atacado por um cachorro!

Das 482 perguntas que fiz sobre o caminho antes de segui-lo, esta foi a única que não fiz: O caminho passa pela natureza??? Na minha cabeça, depois de ver fotos, livros, filmes, isso era tão óbvio que gerou em mim uma expectativa totalmente contrária a realidade. Por conta da “briga dos cafés”, uma bafão em que os cafés locais apagam as novas rotas pela natureza para forçar os peregrinos a passarem por suas portas como nas rotas antigas, muitas setas amarelas são apagadas e redirecionadas, o que acaba por nos fazer andar as vezes até 10km no meio de fábricas em distritos industriais.

setas amarelas que os peregrinos seguem para não se perderem

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Continue segurando o xixi… porque 90% das igrejas que cruzei estavam fechadas. Nenhum padrezinho sequer para conversar, contar histórias, rezar juntinho!!! Pouquíssimas mensões ao santo Tiago, a religiosidade ligada a peregrinação ou a espiritualidade em si. Neste caso, me forcei a lembrar que a espiritualidade estava no meu intenso exercício de auto-observação e jurar a mim mesma que, qualquer próxima esperiência peregrina ou trilheira será no Brasil, onde a natureza é muito mais intensa e os gastos em real. Hehe

Lembrei do Vale do Matutu e de suas trilhas espetaculares, lotadas de cachoeira, mata nativa e gente amistosa! Clique aqui para rever o post do Matutu.

Tampouco as cidades-paradas desta rota tem algum atrativo turístico. São feiosas mesmo (desculpem os nativos de lá)!

REDONDELA - arquitetura típica na região

REDONDELA – arquitetura típica na região

Exceto Valença, última cidade portuguesa já na fronteira com Tui, na Espanha (que tem o centro antigo fechado por muralhas) e a própria Santiago de Compostela, que é bem bonita. Em geral, não creio que viajar para estes lados e gastar em Euro vale a pena.

Santiago de compostela

Santiago de compostela

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Enfim, apesar de alguns amigos que fiz, da reação super positiva do meu corpo neste desafio, da segurança (no Brasil eu jamais faria isso sozinha) e do intenso processo interno de amadurecimento e força mental, esta rota portuguesa eu não indico a vocês, amiguinhos. As outras duas rotas, do Norte e Francesa eu não conheci, então não posso dizer.

Em resumo, tirei mais uma vez a mesma lição desta experiência: criei muitas expectativas quanto a este tão famoso caminho e uma certa decepção é natural quando se espera demais de algo! Quanto a espiritualidade, meus queridos, está sempre dentro de nós, não em uma trilha específica ou santuário. Basta abrir o coração para ver e manifestar! ;-)

Dicas extras:

  • A bagagem grande despachei direto de Lisboa para o hotel em Santiago pela SEUR, e é certamente a melhor opção em termos de preço e logística.
  • Todos os dias eu tomava banho quando chegava e não tomava no dia seguinte de manhã. Isso porque a pele do pé precisa de tempo para secar. Pela manhã, passava vaselina e envolvia com microporo cada um dos dedos. Com isso, não tive nenhuma bolha grave ao longo da caminhada.
  • As meias tem de ser especiais para caminhada, sem costuras e com ventilação. Eu preferi ir de tênis, um numero maior que meu pé, e para mim foi a melhor opção. As botas seriam desnecessárias nesta rota e pesariam muito para meus joelhos.
  • Lembre-se: cada grama se multiplica na trilha. Quanto menos, melhor.